quinta-feira, 29 de novembro de 2012

infernos de novembro



1.

já passou tanto tempo, Maria. você e seu pai têm que conversar.
é. vou tentar.

depois perguntou da avó, contou como andava o mestrado, pediu pra mãe se cuidar e desligou. Maria precisava, às vezes, sentar-se em um banco gelado de praça e deixar que as orelhas pegassem algum vento para que parassem de queimar. ventava muito e, periodicamente, via-se em meio a um redemoinho medonho de folhas verde-alaranjadas largas que espantavam os pombos e esquilos ao redor. olhava para a estátua grande e escura de Gandhi - sentado, de pernas cruzadas, quase sorrindo e com expressão apaziguadora (Maria achava que eram os óculos) - e para as flores mortas no buraco do pedestal sob os pés e para o girassol amarelo gigante apoiado sobre a perna. o homem que vendia camisas empurrava o cabideiro sobre rodas enferrujado. as estampas surreais de homens de terno com cabeças de cavalo e homens em posições marciais com cabeças de tigres que rugem causavam em Maria um sentimento ruim, inquietação incomum para quem havia se acostumado com quase tudo que era disforme. pensou no pai com as várias cabeças animalescas que poderia ter no lugar da cara. adolescentes barulhentos de calças coloridas tentavam tirar fotos jogando folhas para cima em sincronia. sentiu o celular vibrar no bolso. sabia que era um e-mail e exatamente o que dizia. o velho estava morto e ela não conseguia se lembrar de nada: da cara, da voz, da cor dos olhos ou do cabelo. era como se não tivesse – não só para Maria, mas de todo – existido.

2.

o homem encarava em alguma rede social a foto da velha amiga de infância já adulta com o filho pequeno no colo. sorria (de verdade). na legenda a ex-melhor amiga se culpava, talvez em busca de alguma espécie de redenção virtual. falava sobre perda e em como queria ter ajudado mais. ele, que ultimamente pensava só no bigode de novembro que descia diariamente boca abaixo como uma tromba d’água que foge das narinas, lembrou da mulher da foto quando era ainda adolescente. dos olhos pequenos, da camisa cinza apertada com o nome da escola, das calças jeans com a parte das coxas desbotada, do dia em que por alguma conjunção de fatores ela havia concordado em encontrá-lo atrás do prédio no fim da tarde. sentiu nitidamente a textura do cabelo encaracolado e o gosto do chiclete rosado que ela mascava. pensou em como não se lembrava de, à época, ter beijado uma boca tão macia. lembrou das curvas bonitas dos ombros, de como ela entrelaçava os braços por trás do pescoço dele e inclinava a cabeça lateralmente – em um movimento tão bonito quanto calculado – enquanto mordia sua boca. lembrou daquele dia com riqueza de detalhes inusual e percebeu nele os reflexos físicos produzidos pelo filme que mantinha da menina. do produto grosseiro de sua memória seletiva. depois lembrou de como nunca mais voltou a vê-la e de como as notícias a respeito dela eram desencontradas: desistiu da escola, mudou de cidade, usava drogas e brigava com o avó. a mãe enlouqueceu e matou o próprio irmão. tentou drogas piores e perdeu os dentes. vendeu o filho, tentou pular da janela. sumiu e ninguém sabia se estava mesmo viva. a menina bonita do chiclete colorido e da boca maciazinha. a mulher raivosa. a menina fantasma.

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