“Um dia eu vou ficar bem, só pra te querer
mais. Onde quer que eu ande, bem, domingo é pra te dar paz” – Banda do Mar
Outro
dia eu vi você. Faltavam algumas horas para o meu aniversário. Não te
reconheci, a princípio. Não me reconheci, depois. Dizer ‘falta de ar’ seria
pouco, falar como uma garotinha sobre batimentos acelerados do coração também.
Foi, na verdade, uma daquelas pequenas mortes (a gente já conversou sobre
isso?). Lembrei de você, dormindo. Era a coisa que você mais gostava de fazer
quando morávamos juntos. Para fugir, para esquecer. Para evitar ir embora.
Pensei no quanto estava diferente calçando botas de saltos altos (você as
evitava para não ficar muito mais alta que eu). Pensei no quanto eu sentia falta
do que nem tínhamos feito. Falta de todas as manhãs, dos chás e geleias de
morango que não pudemos dividir porque eu não estava lá. Pela minha falta de
presença. E em como, a exemplo das botas de saltos altos, você agora era livre
para fazer e ser tantas outras coisas que, comigo, evitaria. Você agora podia
ser leve, feliz, escrever livros, andar de bicicleta. Ter paz. Quis ir até
você, dar ‘oi’. Quis, até que as portas da aeronave fossem fechadas e o aviso
de desligar os telefones celulares fosse dado, que você estivesse no mesmo voo.
Que se sentasse ao meu lado. Que me visse e perguntasse o que eu fazia ali, com
o que estava trabalhando. Quis que você mencionasse o livro para eu poder dizer
o quanto estou ansioso para lê-lo. Lembrei do conto que você escreveu em uma de
nossas brigas e no quanto ele lembrava nossa vida naquele instante. Pensei no
quanto havíamos feito mal um ao outro. No quanto você (inadvertidamente) tinha
me ‘quebrado’ para sempre, matado qualquer chance de eventualmente ser feliz
com qualquer outra pessoa, por mais amor que eu viesse a ter por qualquer uma
dessas. Pensei no anel de casamento grande demais para seus dedos de pianista.
Lembrei da cena do filme que você me mandou da última vez que nos falamos.
Lembrei do nosso filme todo. Do seu corpo, todas as laterais, todas as imperfeições
tão perfeitas e dos contos sombrios que eu conseguia escrever porque estava
genuinamente feliz e, por isso, enxergava o que as pessoas tinham de pior. Do
beijo no corredor. Dos agarramentos suarentos nos bancos de trás de carros. Da
Kombi da costureira. Das mãos dadas, dos filmes, das fotos e do violão
vermelho. Das bandas, das músicas. Da camisa vermelha com uma estrela preta.
Dos nomes dos filhos. Da Júlia. Do ciúme que me deu uma úlcera sobre a qual
nunca conversamos. Das minhas mentiras, das suas. Das fotos encaixotadas, das
paredes verdes com letras de músicas. Das orações, sessões de terapia, do
quanto todos já sabiam que não ia dar certo porque me conhecem tão bem. Das
bandas que você arruinou para sempre. Das novas bandas que eu encontrei e de
alguma forma sei que você também deve gostar. Dos móveis baratos que montávamos
juntos, da nossa estante perfeita. Da nossa casa. Dos e-mails que eu apago e
voltam sempre. Das milhares de vezes em que a palavra ‘eis’ me causou embrulhos
no estômago. Do medo da sua família. Do medo da minha, que tinha medo de que eu
pudesse te perder. Eu vi tudo isso, olhando fixamente para suas botas de saltos
altos. Eu, daqui, por enquanto, vou colecionando dores. Pigarros. Músicas altas
para evitar silêncios. Filmes para poder chorar sem culpa. Dores de cabeça.
Saudade. Contos inacabados e ruins. Vinhos em canecas de café. Café em canecas
de alumínio. Estalos dos sisos que não tive coragem de tirar. Dezembros.
Sextas-feiras treze.
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