sábado, 22 de setembro de 2012

sorte


1.

voltava outra vez tonta balançando no metrô, gosto de cerveja, whisky e de cigarros de pêssego da noite anterior na boca. perdeu-se por um segundo e começou a pensar em como gostaria de ter o cabelo igual ao das japonesas, tão perfeitamente preto e liso, que brilharia do mesmo jeito refletindo a luz fria e branca das salas de aula ou a luz quente e alaranjada das luminárias de biblioteca. natália era nova, bonita e pequena. tinha sete tatuagens espalhadas pelo corpo, cada uma feita em um momento de desespero mais obscuro do que o outro. fazia-se desenhar na própria pele para evitar o inferno, mesmo, para continuar ali e para lembrar do que havia feito e porquê. para não ter que ouvir a voz de mulher que gritava no canto oco da sua cabeça.

2.

domingo era, para ela, o pior dia da semana. sentia saudades de quando era criança e voltava suada e imunda da rua, já tarde perto das onze, depois de passar o dia brincando. às vezes voltava machucada, com os joelhos ralados ou sem a cabeça do dedão do pé, rasgada pelo asfalto quente. a nuvem acabara de sair do caminho e o sol esquentava os cabelos sujos de natália. inclinou a cabeça para trás, fechou os olhos e tentou não pensar que em pouco tempo teria que voltar para o quarto pequeno de paredes azuladas e para a cama com cheiro de hospital. sentiu alguém encostar de leve em suas costas. ‘está na hora de voltar’, a enfermeira, já um pouco velha, disse com voz doce de avó. natália não se lembra do que fez em seguida, quando voltou do transe só pôde ver as mãos ensopadas de sangue e a velha deitada com a barriga no chão. os homens grandes e gordos corriam e gritavam, mas para ela o mundo ainda estava em silêncio. depois sentiu a agulha fina no braço direito e a luz branca que cegava.

3.

da janela via, nítida e profundamente, as pessoas. a babá que maltratava a criança por que não podia ter filhos, o velho que invejava as pessoas mais novas e por isso olhava-as com raiva gratuita que o corroía por dentro, o rapaz que sabia que estava prestes a fazer algo muito estúpido, mas que (apesar da antecipação da culpa que já sentia profundamente) iria fazê-lo de qualquer forma. enxergava com perfeição a alma triste e castigada das pessoas que escorriam, apressadas, pelos ralos. ratos-esquilos. ursos-cães cinzentos de olhos esbranquiçados ou verdes, da cor do remédio de dormir.

4.

era um dia estalando de quente quando conheceu renata. teve a estranha sensação de que a partir dali não poderia mais continuar a levar a vida normalmente caso se afastasse dela. queria morar abraçada nela, levá-la ao teatro e dar-lhe banho. queria ouvir discos de vinil deitada sobre o tapete bebendo um vinho de menos de dez reais na companhia de renata. queria tirar fotos de pequenas partes do corpo dela para não esquecer. queria tatuar na nuca aquela data. queria casar-se com renata no instante em que a viu sair do parque com suas botas pretas e seu vestido verde.

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