terça-feira, 7 de novembro de 2017
domingo, 7 de dezembro de 2014
Treze
“Um dia eu vou ficar bem, só pra te querer
mais. Onde quer que eu ande, bem, domingo é pra te dar paz” – Banda do Mar
Outro
dia eu vi você. Faltavam algumas horas para o meu aniversário. Não te
reconheci, a princípio. Não me reconheci, depois. Dizer ‘falta de ar’ seria
pouco, falar como uma garotinha sobre batimentos acelerados do coração também.
Foi, na verdade, uma daquelas pequenas mortes (a gente já conversou sobre
isso?). Lembrei de você, dormindo. Era a coisa que você mais gostava de fazer
quando morávamos juntos. Para fugir, para esquecer. Para evitar ir embora.
Pensei no quanto estava diferente calçando botas de saltos altos (você as
evitava para não ficar muito mais alta que eu). Pensei no quanto eu sentia falta
do que nem tínhamos feito. Falta de todas as manhãs, dos chás e geleias de
morango que não pudemos dividir porque eu não estava lá. Pela minha falta de
presença. E em como, a exemplo das botas de saltos altos, você agora era livre
para fazer e ser tantas outras coisas que, comigo, evitaria. Você agora podia
ser leve, feliz, escrever livros, andar de bicicleta. Ter paz. Quis ir até
você, dar ‘oi’. Quis, até que as portas da aeronave fossem fechadas e o aviso
de desligar os telefones celulares fosse dado, que você estivesse no mesmo voo.
Que se sentasse ao meu lado. Que me visse e perguntasse o que eu fazia ali, com
o que estava trabalhando. Quis que você mencionasse o livro para eu poder dizer
o quanto estou ansioso para lê-lo. Lembrei do conto que você escreveu em uma de
nossas brigas e no quanto ele lembrava nossa vida naquele instante. Pensei no
quanto havíamos feito mal um ao outro. No quanto você (inadvertidamente) tinha
me ‘quebrado’ para sempre, matado qualquer chance de eventualmente ser feliz
com qualquer outra pessoa, por mais amor que eu viesse a ter por qualquer uma
dessas. Pensei no anel de casamento grande demais para seus dedos de pianista.
Lembrei da cena do filme que você me mandou da última vez que nos falamos.
Lembrei do nosso filme todo. Do seu corpo, todas as laterais, todas as imperfeições
tão perfeitas e dos contos sombrios que eu conseguia escrever porque estava
genuinamente feliz e, por isso, enxergava o que as pessoas tinham de pior. Do
beijo no corredor. Dos agarramentos suarentos nos bancos de trás de carros. Da
Kombi da costureira. Das mãos dadas, dos filmes, das fotos e do violão
vermelho. Das bandas, das músicas. Da camisa vermelha com uma estrela preta.
Dos nomes dos filhos. Da Júlia. Do ciúme que me deu uma úlcera sobre a qual
nunca conversamos. Das minhas mentiras, das suas. Das fotos encaixotadas, das
paredes verdes com letras de músicas. Das orações, sessões de terapia, do
quanto todos já sabiam que não ia dar certo porque me conhecem tão bem. Das
bandas que você arruinou para sempre. Das novas bandas que eu encontrei e de
alguma forma sei que você também deve gostar. Dos móveis baratos que montávamos
juntos, da nossa estante perfeita. Da nossa casa. Dos e-mails que eu apago e
voltam sempre. Das milhares de vezes em que a palavra ‘eis’ me causou embrulhos
no estômago. Do medo da sua família. Do medo da minha, que tinha medo de que eu
pudesse te perder. Eu vi tudo isso, olhando fixamente para suas botas de saltos
altos. Eu, daqui, por enquanto, vou colecionando dores. Pigarros. Músicas altas
para evitar silêncios. Filmes para poder chorar sem culpa. Dores de cabeça.
Saudade. Contos inacabados e ruins. Vinhos em canecas de café. Café em canecas
de alumínio. Estalos dos sisos que não tive coragem de tirar. Dezembros.
Sextas-feiras treze.
segunda-feira, 11 de março de 2013
quimera
olhou para o rosto do filho dormindo. os cabelos loiros finos
e o pijama de flanela esverdeado. as sobrancelhas longas e os pés pequenos.
chorou por algumas horas. esfregou os olhos com força na tentativa de produzir
alguma outra dor. levantou-se e caminhou envergado até a porta. era muito cedo
e a neblina baixa deixava ver pouco do deserto cinzento. tentou respirar fundo,
mas o vento frio queimou suas narinas. entrevia nitidamente o desespero que era
pensar em procurar pela mulher. na cidade. no mundo. sentiu as costelas como
mãos que repuxavam. quis gritar. a beleza do que haviam construído estava toda
na dor, mas isso só fazia algum sentido se estivessem juntos.
terça-feira, 11 de dezembro de 2012
minha flor
1.
o bar não está cheio nem vazio. maria havia pedido que me sentasse na mesa vizinha. está bonita e, excepcionalmente, maquiada. o vestido azul é repleto de pequenas corujas brancas e as botas altas com arabescos em alto relevo parecem ter todas as variações possíveis da cor marrom. a calcinha (cor de calcinha) está no meu bolso e ainda um pouco úmida. chama o garçom pelo nome. pede um conhaque e o cinzeiro. um rapaz que aparenta ter menos de vinte anos pergunta o nome dela e se pode pagar-lhe uma bebida. maria olha para mim e sorri. não consigo me lembrar de nenhum outro instante específico em que tenha sentido mais vontade de comê-la. ela agora se insinua e pede que ele chegue mais perto, fala de astrologia e diz que gostaria de ler as linhas de sua mão. pega a faca pontuda de cortar carne que estava deitada sobre o guardanapo e prega com força a mão do rapaz à mesa de madeira do bar. ele berra e sangra em profusão. chora. maria ofega e me encara. leva uma das mãos à boca e a outra ao meio das pernas. geme e se contorce. goza ruidosamente. sai pela porta dos fundos com o corpo ainda bastante trêmulo. sinto o cheiro do perfume de baunilha de maria misturado ao de ferro do sangue escuro que escorre lentamente por entre as frestas da mesa à minha frente. o rapaz, agora, descansa.
2.
o homem sua. bufa. bate forte com as costas da mão direita na cara da mulher amarrada na cadeira à sua frente. urra. ri alto de nervoso. espera que ela reaja. a pedra verde do anel que ele usa no dedo médio já está, há uns três tapas, coberta de sangue. maria recebe, satisfeita, a pancada. meneia. volta a centralizar a cabeça. ri vermelho. o homem resolve segurá-la pelo alto dos cabelos e passa a socá-la. a parte interna das coxas de maria formiga. ela acabara de livrar-se das algemas e já entrevia, excitada, o filme do que aconteceria em seguida. ela sabia que eu estava assistindo.
3.
maria pega a vela comprida e o isqueiro na gaveta do criado mudo. é tudo bonito, mas há uma ternura muito particular nos movimentos dos seus braços e ombros. está completamente vulnerável. está desarmada e não há na cara de maria o menor sinal de cálculo. me deita com a barriga para baixo na cama de lençóis frios e separa meus dois braços do corpo. senta-se sobre meu cóccix margeando minhas pernas com os joelhos. derruba gotas de parafina quente em minhas costas em sentidos e intensidades aleatórios. percorre também o próprio corpo com a vela e deixa cair vagarosamente o peso do corpo sobre o meu. 'eu confio cegamente em você', ela fala, em voz baixa, em meu ouvido direito. respira fundo uma vez e eu sinto seu corpo mais leve.
a mulher foragida dorme, tranquila e silenciosamente.
minha flor.
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
Barba ensopada de sangue
"[...] O peso é uma de suas sensações favoritas. Ele a identificaria no ato se ela se deitasse sobre ele amanhã cedo ou daqui a um ano, tanto faz. E a maneira como um corpo se move. Se está em contato íntimo com o seu, se puder segurá-lo com firmeza usando as duas mãos nos diversos pontos em que se articula e ler dessa forma os seus movimentos voluntários e involuntários, suaves e bruscos, repetidos ou não, poderá reter para sempre a imagem tátil que lhe dirá bem mais que qualquer estímulo visual sobre como esta pessoa se encolhe e se solta, como pede e recusa, como se aproxima e se afasta. Ela tem clavículas saltadas, culotes fartos, pernas imensas e musculosas por dentro. Cabelos ásperos e o suor um pouco amargo como café fraco. Hálito de leite com açúcar. A maneira como ela usa os dentes. A autoconsciência corporal das mulheres bonitas restringe seus movimentos. Uma coleção de pequenas vergonhas e retraimentos que vão sumindo em parte, pouco a pouco, na penumbra cada vez mais reveladora do quarto mofado. O retraimento dá lugar a uma certa submissão. A diferença é sutil. Vai lembrar de tudo."
Daniel Galera - Barba ensopada de sangue - p. 81
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
infernos de novembro
1.
já passou tanto tempo, Maria. você e seu pai têm
que conversar.
é. vou tentar.
depois perguntou da avó, contou como andava o
mestrado, pediu pra mãe se cuidar e desligou. Maria precisava, às vezes,
sentar-se em um banco gelado de praça e deixar que as orelhas pegassem algum
vento para que parassem de queimar. ventava muito e, periodicamente, via-se em
meio a um redemoinho medonho de folhas verde-alaranjadas largas que espantavam
os pombos e esquilos ao redor. olhava para a estátua grande e escura de Gandhi
- sentado, de pernas cruzadas, quase sorrindo e com expressão apaziguadora
(Maria achava que eram os óculos) - e para as flores mortas no buraco do
pedestal sob os pés e para o girassol amarelo gigante apoiado sobre a perna. o
homem que vendia camisas empurrava o cabideiro sobre rodas enferrujado. as
estampas surreais de homens de terno com cabeças de cavalo e homens em posições
marciais com cabeças de tigres que rugem causavam em Maria um sentimento ruim,
inquietação incomum para quem havia se acostumado com quase tudo que era
disforme. pensou no pai com as várias cabeças animalescas que poderia ter no
lugar da cara. adolescentes barulhentos de calças coloridas tentavam tirar
fotos jogando folhas para cima em sincronia. sentiu o celular vibrar no bolso.
sabia que era um e-mail e exatamente o que dizia. o velho estava morto e ela
não conseguia se lembrar de nada: da cara, da voz, da cor dos olhos ou do
cabelo. era como se não tivesse – não só para Maria, mas de todo – existido.
2.
o homem encarava em alguma rede
social a foto da velha amiga de infância já adulta com o filho pequeno no colo.
sorria (de verdade). na legenda a ex-melhor amiga se culpava, talvez em busca
de alguma espécie de redenção virtual. falava sobre perda e em como queria ter
ajudado mais. ele, que ultimamente pensava só no bigode de novembro que descia
diariamente boca abaixo como uma tromba d’água que foge das narinas, lembrou da
mulher da foto quando era ainda adolescente. dos olhos pequenos, da camisa
cinza apertada com o nome da escola, das calças jeans com a parte das coxas
desbotada, do dia em que por alguma conjunção de fatores ela havia concordado
em encontrá-lo atrás do prédio no fim da tarde. sentiu nitidamente a textura do
cabelo encaracolado e o gosto do chiclete rosado que ela mascava. pensou em
como não se lembrava de, à época, ter beijado uma boca tão macia. lembrou das
curvas bonitas dos ombros, de como ela entrelaçava os braços por trás do
pescoço dele e inclinava a cabeça lateralmente – em um movimento tão bonito
quanto calculado – enquanto mordia sua boca. lembrou daquele dia com riqueza de
detalhes inusual e percebeu nele os reflexos físicos produzidos pelo filme que
mantinha da menina. do produto grosseiro de sua memória seletiva. depois
lembrou de como nunca mais voltou a vê-la e de como as notícias a respeito dela
eram desencontradas: desistiu da escola, mudou de cidade, usava drogas e
brigava com o avó. a mãe enlouqueceu e matou o próprio irmão. tentou drogas
piores e perdeu os dentes. vendeu o filho, tentou pular da janela. sumiu e
ninguém sabia se estava mesmo viva. a menina bonita do chiclete colorido e da
boca maciazinha. a mulher raivosa. a menina fantasma.
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